1. |
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- ESTRAGON
Eu tive um sonho.
- VLADIMIR
Não me conte!
- ESTRAGON
Eu sonhei que ---
- VLADIMIR
NÃO ME CONTE!
- ESTRAGON (num gesto que abarca o Universo)
Este aqui lhe basta? (Silêncio.) Isso não é gentil de sua parte, Didi. Para quem vou contar meus
pesadelos particulares se não posso contá-los a você?
- VLADIMIR
Que permaneçam particulares. Você sabe que não posso suportá-los.
- ESTRAGON (frio)
Às vezes me pergunto se não seria melhor se a gente se separasse.
- VLADIMIR
Você não iria longe.
- ESTRAGON
Isso seria muito ruim, realmente muito ruim. (Pausa.) Não seria, Didi, realmente muito ruim?
(Pausa.) Quando se pensa na beleza do caminho. (Pausa.) E na bondade dos viajantes. (Pausa. Sendo
meigo.) Não seria, Didi?
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2. |
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3. |
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É a maré de azar
Que molda seu olhar atento
Para o que não satisfaz?
E é desse jeito, ponderado,
Corretamente enquadrado
Que se desenvolve o cerne
Da questão do desgosto
De viver como um encosto
Sem lugar para ir e/ou ficar
Estando superado
Abra espaço para o singular
Ele é aquele que em seu íntimo
Aprendeu a misturar e tratar
Diferentemente tudo aquilo que viu
Parecido com o nosso caso, aqui
No Brasil
E é desse jeito, desengonçado,
Mais na vontade que jeito
Que se desalinha o verme
Da questão do duplo peso
De ter carregado maus encontros
Quanto a guerras e crises profundas
Neste jeito de agir e de pensar
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4. |
04 - Língua falada
01:48
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Dou preferência para a língua falada
Em detrimento da escrita
E não adianta chorar pela falta de firmeza
Que a fala oferece, se perdendo ao vento
Como um açúcar derretendo numa xícara de café
A fala não se fecha ao contrário da cravada
Sempre atual, atualizando os escritos de outrora
Mas que dificuldade imensa essa de encontrar
Palavras que venham a expressar o que quero dizer
Sobre elas mesmas, as palavras em si, em relação
Deixando o equívoco viúvo do sentido...
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5. |
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- VLADIMIR
Tudo o que sei é que, sob estas condições, as horas são longas e nos compelem a nos
distrairmos com práticas que – como devo dizer – que podem parecer razoáveis à primeira vista, até se
tornarem um hábito. Você pode argumentar que isso impede que nossa razão sucumba. Sem dúvida.
Mas não estará a razão vagando pela noite sem fim das profundezas abissais? É isso que eu às vezes me
pergunto. Você está acompanhando meu raciocínio?
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6. |
06 - Cosmos e Damião
02:33
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Qui qui qui qui não é qui qui qui
Que bom é bom demais pra ser aqui
Onde um faz hum e outro hum hum
Mas que bom, todos hum!
Como um dia, não ria
Sorria como nós!
Porque vós tem nome doce, e um som de voz
Qui qui qui qui não é qui qui qui
Que bom é bom demais pra ser aqui
Onde um faz humm, e outro humm humm
Mas que bom, todos humm!
Como um dia, não ria
Sorria como nós!
Porque vós tem nome doce, e um som de voz
Mais humm! Mais humm, Bahia! mais humm!
Mais humm, buchinha!
Todos humm como um dia
Mais humm! Mais humm, Bahia! mais humm!
Mais humm, buchinha!
Todos humm como um dia
Um dia como esse de Cosmos e Damião
Você pode até dançar com Damião
Mas quem contrariar a lei do Cosmos
Não vai pagar - já paga ao contrariar!
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7. |
07 - Spleen (Baudelaire)
01:05
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Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
— Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.
Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
— Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas os raios do sol a se pôr.
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8. |
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Comprei uma briga bem maior que eu
Sei disso, não nego nem me escondo
Só deixo estar...
Vezes, talvez na reta final dos encontros
Que me puxaram pra baixo numa crise total
É suficiente estar contente consigo mesmo?
Ou tecer em si mesmo a ternura de se sentir abraçado pelo laço social: te doando licenciatura para legislar cada vez com mais poder e individualidade contando com a fraqueza geral...
Existe uma galera... um acorde de vozes que teimam em me fazer apaixonar pela possibilidade virtual mas potente e então real de me tornar um outro ser; mais potente e independente das necessidades e leis que este mundo nos inquiriu e podem ser conferidas por qualquer olhar vil.
Viu?
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9. |
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- POZZO
Ele parou de chorar. (A Estragon.) Você tomou o lugar dele. (Liricamente.) As lágrimas do
mundo têm uma constância inabalável. Para cada um que pára de chorar, em algum outro lugar outro
começa. O mesmo vale para o riso. (Ri.) Portanto não falemos mal de nossa geração. Ela não é mais
infeliz que as anteriores. (Pausa.) Não falemos bem, tampouco. (Pausa.) Não falemos nada sobre isso.
(Pausa. Prudentemente.) É verdade que a população tem aumentado.
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10. |
10 - Derivada Brasileira
01:36
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É a maré de azar
Que molda seu olhar atento
Para o que não satisfaz?
E é desse jeito, ponderado,
Corretamente enquadrado
Que se desenvolve o cerne
Da questão do desgosto
De viver como um encosto
Sem lugar para ir e/ou ficar
Estando superado
Abra espaço para o singular
Ele é aquele que em seu íntimo
Aprendeu a misturar e tratar
Diferentemente tudo aquilo que viu
Parecido com o nosso caso, aqui
No Brasil
E é desse jeito, desengonçado,
Mais na vontade que jeito
Que se desalinha o verme
Da questão do duplo peso
De ter carregado maus encontros
Quanto a guerras e crises profundas
Neste jeito de agir e de pensar
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11. |
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Antes preciso averiguar se realmente há passo verdadeiro
No compasso vislumbrante da vontade sazonal
Já sabidamente domada pelo campo social ordeiro
Para não estar em real recuando de maneira formal
E sem saber, como um tolo e inocente animal
Como tantos, nesse instante, soltos ao natural
Sendo traçados pelo mais atento, pelo mais interessado
Como os ferozes agentes do mercado e do estado
Prontos a cumprir o regrado, concordado
Acertado a assinaturas responsáveis e fundamentadas
Mas deixo disso vez ou outra, dormindo ou acordado
Para tentar acertar meus passos em uma vida que me forçou beligerante
Mas não sem antes ter sido um viciado em refrigerante
E, quem sabe, hoje em dia, menos ignorante
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12. |
12 - Só ensejo
01:30
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Aprendi a incrementar o som da vida
Com palavras que me encantam os tímpanos
Guiam meu caminho pelo arbusto de ver
Que não importa, eu não prevejo o que virá
Eu só ensejo quando quero e quando dá
Só ensejo dizer que o som se comunica sem falar
Nosso desejo o abraça, mas normalmente se cala
Porque a cidade nos conduz só a trampar
Mata o lúdico;
Sugere o gênero;
Sepulta o público;
Casteia em código;
Decide o patético;
Vira a página;
Desempata a ética;
Endeusa o gráfico;
Atenua a penúria;
Desmente a injúria;
Define o ângulo;
Rechaça a dúvida;
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13. |
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- VLADIMIR
Não vamos perder tempo com discussões inúteis! (Pausa. Veemente.) Vamos fazer alguma
coisa, enquanto temos a oportunidade! Não é todo dia que precisam de nós. Não que precisem
realmente de nós. Outros poderiam tratar do assunto tão bem quanto a gente, talvez até melhor do que
a gente. Esses gritos de socorro que ainda ressoam em nossos ouvidos foram dirigidos à humanidade
inteira! Mas neste momento, neste lugar, a humanidade inteira se resume em nós, queiramos ou não.
Vamos fazer o melhor que pudermos, antes que seja tarde demais! Vamos representar dignamente, ao
menos uma vez, o terrível papel que um cruel destino nos reservou! Que é que você me diz? (Estragon
não diz nada.) É evidente, também, que, se ficarmos de braços cruzados, pesando os prós e os contras,
também faremos justiça à nossa espécie. O tigre se precipita em socorro de seus congêneres sem a
menor reflexão. Ou foge a se esconder nos emaranhados da selva. Mas a questão não é essa. O que é
que estamos fazendo aqui? Esta é a questão. E somos abençoados por conhecer a resposta. Sim, em
meio a essa imensa confusão, uma só coisa está clara: estamos esperando Godot.
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14. |
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Qual é a causa do nosso sofrimento?
Se buscamos sempre tentar estar
Em um tempo e espaço diferente desse que aqui está
Seja pra acusar um outro, seja para adentrar uma obra
Seja pra dizer que não consegue superar um antigo mal
Triste cair nisso, sempre evito
Acredite mais na força do pensamento
Entre outras, acredito mais na força do pensamento.
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